“É no campo da vida que se esconde um tesouro.

Vale mais que o ouro, mais que a prata que brilha.

É presente de Deus, é o céu já aqui, o amor mora ali e se chama família.”

domingo, 3 de julho de 2011

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Vida Selvagem

Conheça a vida selvagem: tenha filhos”. Sempre me divirto quando vejo esse adesivo colado no vidro de algum carro. Essa frase é a mais pura verdade. A maternidade nos aproxima das fêmeas de todas as espécies. Em nenhuma outra fase da vida percebemos tão claramente o papel animalesco que a natureza nos reserva.Viramos leoas que se desdobram para cuidar da cria, alimentá-la, protegê-la e – principalmente – amamentá-la.

Sim. Não importa se a mulher é uma executiva empertigada, uma intelectual inatingível, uma operária calejada. Quando o filho nasce, ela vira um peito. Ou melhor: dois. Nada do que a mulher fez na vida ou ainda pretende fazer tem importância diante da função especialíssima de ser a única fonte de alimento de um ser que acabou de chegar. Um ser que vai crescer, ajudar a povoar o mundo e tocar em frente o barco.

Quando amamentamos, nos sentimos um par de peitos. Nas primeiras semanas, o bebê  mama a cada hora e meia. E vivemos para isso. Nossa função nesse mundo – de manhã, de noite, de madrugada – é amamentar. E, claro, trocar fralda, embalar, acalmar o choro, dar banho, lavar roupa etc, etc, etc. Quando o bebê  mama e dorme, ganhamos uns 90 minutos de folga. Aí não sabemos o que fazer. Tomar uma ducha? Almoçar? Colocar as pernas para cima?
Os primeiros tempos da maternidade foram, sem dúvida, a fase mais selvagem da minha vida. Acordava cheia de energia, pulava da cama e, quando o Manu  deixava, tomava um banho revigorante. Às 7 horas tomava um café da manhã reforçado enquanto assistia ao Bom Dia Brasil. Depois passava o dia inteiro em função dele e da Camilinha.
Sinto tanto pelo fato de não ter amamentado ela...
No período que esteve em coma, meu leite secou.
Snifff...

Logo após ter um filho, a mulher tem uma disposição para cuidar das coisas que só a Deus pode explicar. Meu gasto calórico devia ser brutal. Almoçava pratos gigantescos e, ainda assim, só emagrecia. No Spa da Selva, perdi rapidamente mais de 10 quilos na dieta do muleque.
À noite, a pilha acabava. Às 22 horas, estava exausta. Dormia profundamente e mal conseguia abrir os olhos durante a mamada da meia-noite. Ele mamava, eu dormia.
Às quatro da manhã, me sentia recuperada. Pronta para a maratona de mamadas o cuidado com a Camilinha, estudando a noite e ainda os afazeres de mais um dia. Pronta para sobreviver na selva e garantir a sobrevivência dos filhotes..

Com o tempo, as obrigações mudam. Aos poucos vamos nos recuperando várias liberdades que haviam sido confiscadas pela maternidade.  Que venha a nova selva, então. No lugar da leoa incansável, meus filhos vão encontrar a leoa maleável. Muito mais do que era a moça que pariu aos 22 anos. A natureza é mesmo sábia.
Por tudo isso (e muito mais), sempre me considerei uma mãe dedicada. Eu me achava uma ótima mãe até  ouvir falar e conhecer a mãe do Pietro. Perto do que ela faz pelo filho, o que fiz pelos meus é uma espécie de passeio no parque, com direito a pipoca e algodão doce. Vida selvagem não é a minha. É a dela. Posso ser uma mãe dedicada. Ela é mãe coragem.
Pietro tem 11 anos. É autista. Não é um daqueles autistas portadores da síndrome de Asperger (que falam, avançam nos estudos e podem até chegar ao mestrado).Pietro é um autista de baixo rendimento. Não fala, usa fralda, precisa ser vestido, trocado, alimentado e cuidado 24 horas por dia. Muitas vezes se debate e se torna agressivo.
Aos 39 anos, Karla, a mãe coragem, já precisou consertar os dentes da frente. Eles foram quebrados pelo filho. Se você acha que a criança que tem em casa lhe dá trabalho demais, espere até conhecer a história de Karla, uma gaúcha de Três de Maio que vive há duas décadas em São Paulo. Não sei de onde ela tira energia para enfrentar o que enfrenta. Por sorte (ou por destino), Karla é casada com Claudio de Teves, um pai coragem.
A dedicação e o amor incondicional que esse casal oferece ao filho fazem qualquer um se arrepender de algum dia ter dito que criança dá trabalho demais. Quem tem um filho saudável não sabe o que é trabalho. Karla e Claudio vivem para o filho (e para a filha Sandra, de 5 anos, que não tem a doença). Não podem trabalhar fora de casa. Quando o autismo do filho se manifestou, Karla abandonou o trabalho de auxiliar de fisioterapia.

 
Virou artesã. No período em que Pietro está na escola, Karla faz panos de prato e toalhas. Claudio prepara o almoço e o jantar. Pietro não aceita comida esquentada. Se ela não for fresquinha, ele percebe e não come. Depois de cuidar da alimentação da família, Claudio sai para entregar as encomendas do artesanato que Karla produz. São movidos pelo amor e acreditam que o garoto é capaz de senti-lo e retribuí-lo. “Autista não é robô. Ele sabe amar. Se peço um beijo, Pietro me dá o rosto”, diz Karla.

Nos momentos de grande agitação – quando Pietro se morde e pode agredir quem estiver perto – a única coisa que o acalma é o metrô. Isso mesmo. Ele tem fixação pelo metrô. Quando não consegue controlar o garoto, o que Karla faz? Pega o metrô na estação Tucuruvi e vai até o Jabaquara. Depois volta até o Tucuruvi. Se precisar, vai novamente ao Jabaquara e retorna ao Tucuruvi.

Cruza São Paulo de norte a sul (são 23 estações em cada trecho) para acalmar Pietro. Na bolsa, leva o almoço do garoto acondicionado num pote plástico. Quando ele fica menos agitado, saltam na estação Parada Inglesa. Karla procura duas cadeiras vazias na beira dos trilhos, com vista privilegiada para o trem. Abre o pote, retira uma colher da bolsa e alimenta Pietro. A plataforma do metrô é sua sala de jantar.
As famílias dos autistas enfrentam todo tipo de desassistência. Não encontram vagas em escolas preparadas para lidar com o problema, não encontram atendimento médico adequado e, como é de se imaginar, não encontrar dentistas dispostos a atender autistas. Quando essas crianças precisam de tratamento odontológico (mesmo que seja uma simples limpeza) costumam ser internadas num hospital para receber anestesia geral.

“Mesmo quem pode pagar, não encontra dentistas dispostos a cuidar de autistas. Eles sequer vêem o paciente. Simplesmente informam que não os atendem”, diz Adriana. Ela decidiu tentar fazer diferente. Depois de se especializar em pacientes especiais na Associação Paulista dos Cirurgiões Dentistas (APCD), frequentar reuniões de famílias autistas e estudar os métodos de aprendizagem disponíveis, ela criou algumas técnicas que lhe permitem se aproximar desses pacientes. Na maior parte dos casos, ela consegue cuidar dos dentes dessas crianças (e também de adultos) no consultório, sem anestesia geral.
O processo é longo. Exige extrema dedicação das famílias e da dentista. Às vezes, ela precisa de quatro sessões (ou mais) só para conseguir levar a criança até a cadeira. Quando isso não é possível e o procedimento necessário é simples (uma limpeza, por exemplo), atende a criança no chão. O entusiasmo de Adriana surpreendeu a família de Pietro. “Essa dentista não existe. Acho que estou sonhando. Ela senta no chão com meu filho, tenta de tudo e não olha no relógio para ver se a sessão acabou”, diz Karla.


Karla, Pietro e Adriana me deram uma lição de vida. Agradeço todos os dias por ter a oportunidade de encontrar gente tão especial. Saio de cada conversa melhor do que entrei.




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